Cenografia da montagem “Transtorna” da Cia. de Dança Palácio das Artes. A proposta é uma intervenção arquitetônica que busca alterar a relação entre palco e platéia: todas as 470 poltronas do primeiro setor do Grande Teatro do Palácio das Artes foram cobertas por um tablado de madeira — uma extensão do palco que cobriu a platéia e aumentou o palco em mais de 450 m2; criando um espaço liso, contínuo, ou um teatro “só-palco”. Através dessa mudança espacial, a cenografia desfaz a segregação de qualquer teatro: palco e platéia des-hierarquizados e reunificados arquitetonicamente. A expansão foi complementada por um cenário que se transforma a partir da evolução da própria coreografia (dirigida por Cristina Machado), onde caixas de papelão e plástico translúcido foram empilhadas, alinhadas, espalhadas e desorganizadas pelos dançarinos.

Transtorna é conseqüência da preocupação da Cia. de Dança Palácio das Artes em pesquisar o universo das cidades. Pensada inicialmente para um local fora do Grande Teatro, a cenografia terminou por transportar para dentro do teatro as questões exploradas no espetáculo: uma referência à condição da cidade contemporânea imaginada por uma equipe multidisciplinar de 21 bailarinos-criadores, o músico Daniel Maia, o figurinista Leo Piló e o iluminador Guilherme Bonfanti.

Abaixo, uma resenha do espetáculo publicada pelo crítico de teatro e dança Marcello Castilho Avellar:
“Transtorna da Companhia de dança do Palácio das Artes, não se parece com realizações de outros grupos de dança contemporânea no Brasil. O espetáculo Transtorna que a Companhia de dança do Palácio das Artes apresentou no fim de semana, da continuidade ao projeto atual da Companhia: constituir um grande grupo de criadores-intérpretes, categoria quase sempre vivenciada apenas por pesquisadores solitários ou reunidos em pequenos conjuntos. Mais uma vez, a decisão se mostra apertada, no sentido de permitir à Companhia realizar um trabalho que quase não se parece com as realizações de outros grupos de dança contemporânea no Brasil.

“(…) Transtorna volta a lidar de maneira expressiva e incomum com o espaço. Revisita a idéia de palco total, proposta por teóricos e encenadores do Teatro com Antonin Artaud e Jerzy Grotwski, um espaço cênico onde palco e platéia praticamente se misturam. Não se trata de novidade em si mesma – o teatro vem usando exaustivamente essa possibilidade. Mas se considerarmos que a dança é mais arraigada a tradição do palco à italiana (a cena se apresentando de frente para uma platéia separada dela por uma espécie de parede invisível), é fácil perceber como Transtorna pode mexer com o imaginário dos espectadores e transformar conceitos.

“O uso do espaço pelo espetáculo não merece elogios apenas por isso. Destaca-se, também, pela adequação: constrói uma cena altamente metafórica do caos urbano que a obra pretende apresentar. E não tenta ser um preciosismo: os criadores de Transtorna demonstram sabedoria suficiente para desfazer seu palco e construir nova passarela, quase fechada em arena, quando necessário para o desenvolvimento da coreografia. Mostram, também, eficiência na mecânica desses espaços tão pouco praticados, sinalizando as necessidades dos intérpretes e as movimentações da platéia sem abrir vazios no conjunto de estímulos estéticos.

“(…) Esses desvios da tradição, do espaço ao conceito, acabam colocando em xeque as convicções dos espectadores, e o espetáculo lida bem com isso. Acostumado ao palco italiano, o público tenta se relacionar com o novo espaço como se ele fosse composto por diversas e minúsculas cenas tradicionais, quase sempre sinalizadas por focos de luz. Transtorna perversamente o atinge com a performance na penumbra. Confrontado a informação de que o espetáculo “fala” sobre cidades, o espectador pode produzir interpretações que expõem a maneira como a sociedade trata boa parte de seus integrantes como pessoas “invisíveis”. Ao mesmo tempo, refaz seu próprio recurso frente ao espetáculo: descobre que a sequência mais iluminada e acrobática não é necessariamente mais importante que aquela na penumbra e com movimentos mais simples, que o olhar talvez seja conduzido mais por hierarquias da tradição que pelas lógicas da arte.”
Estado de Minas, 13/11/2006

Fotos: Paulo Lacerda, Carlos Teixeira, Guto Muniz, Jomar Bragança

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