Com esse apelido tão simpático, o Dutão é possivelmente o viaduto mais amado do Rio do Janeiro. É nele que acontece o Baile Charme em Madureira, bairro na zona norte do Rio. A festa acontece há mais de 30 anos e transformou o Viaduto Prefeito Negrão de Lima em uma pista de dança que, todo sábado à noite, recebe cerca de duas mil pessoas  — uma prova da relação afetiva que pode surgir entre uma obra viária hostil e a comunidade local.

Música: R&B (rhythm & blues) mais contemporâneo que de raiz (hip hop também). Quase não se ouve monstros sagrados dos anos 1970 como Temptations, Al Green, Isley Brothers, Funkadelic, Ohio Players ou Frankie Beverly. Em compensação, muito Snoop Dogg, Rihanna, Beyoncé e Brian McKnight, além de nomes menos conhecidos como Ja Rule, Kelis, MC Lyte, Tiara Thomas, Wildchild e Bad Rabbits. Há também vários DJs, residentes ou convidados: Guto DJ, DJ Flash, DJ Espada, DJ Loopy, DJ A, Fabio R&B, além do residente DJ Corello, que equilibra “modern and classic R&B” em suas noites.

Tabela de preços do baile: entrada até meia-noite: grátis! Depois: R$ 10. Brahma ou Antarctica: 2. Água: 1. Vodka: 1. Coca: 2. Energético: 1.

Sabendo que Madureira é considerado um reduto do samba carioca, às vezes o Dutão também recebe sambistas. Na foto do Google Street View, por exemplo, dá para ver um cartaz anunciando um show de Diogo Nogueira, filho de João Nogueira (aliás, o primeiro disco que João lançou, no final dos anos 1960, era um compacto com o título Alô Madureira).

A pista surgiu por iniciativa do bloco carnavalesco Pagodão de Madureira, que ainda hoje usa o espaço durante o Carnaval. Segundo o DJ Corello, o charme do baile Charme é uma música diferente do R&B e do funk: “As músicas do funk têm uma batida forte, enquanto o Charme é mais lento e tem melodia mais refinada. Na dança, o funk tem um apelo mais sensual. O Charme tem raízes no hustle, o estilo dançado por John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, só que é mais elaborado.”

O Charme vem de uma tendência para abrandar a cadência eletrizante do R&B ao adotar movimentos coreográficos mais elegantes inspirados em danças sincronizadas norte-americanas, como o Electric Slide dos anos 1990. Segundo a jornalista Catherine Osborn, o Charme é uma coreografia híbrida brasileira-norte-americana que, apesar de similar ao Eletric Slide, incorpora o ritmo e a inflexão do samba e do pagode em rotinas elaboradas, então misturando-as com passos comuns nos Estados Unidos (estes incluindo um certo shuffle-hops, o knee-swiveling do Brooklyn e ainda um outro, o Grapevine).

Segundo uma postagem de 2011 no blog da arquiteta Ana Luiza Nobre, “o espaço é formado basicamente por dois recintos contíguos, definidos pela estrutura do viaduto e suas alças de acesso. Um cercado em chapa metálica envolve a área. O ingresso é pago é há banheiros na extremidade oposta (sem água, mas com papel higiênico à vontade). Há também mesas e cadeiras de plástico vermelho, onde poucos se sentam, e só. O DJ fica diante de três pilares coloridos (um deles é rosa). E os freqüentadores são homens e mulheres – mais homens que mulheres, e em sua maioria negros – que se vestem com capricho para ir dançar sob o viaduto, ao som de uma versão eletrônica da black music dos anos 70, numa coreografia coletiva cujos passos a maioria conhece, intui ou pelo menos segue (a quem? difícil saber).”

O Baile Charme tem um irmão black music bem parecido em Belo Horizonte, onde os Duelos de MCs acontecem todo mês sob um outro baixio musical, o do Viaduto Santa Tereza, que se tornou local de resistência e ponto de encontro da cultura rapper da cidade. Este improvável patrocínio da música negra e da dança por uma infraestrutura viária violenta certamente é um denominador comum que aproxima essas danças sob um tabuleiro.  E delineia, quem sabe, uma futura rede de equipamentos culturais em espaços colaterais apropriados de forma espontânea. Quem sabe no Recife, cidade de mil pontes e viadutos (de “rios, pontes e overdrives, impressionantes esculturas de lama”) não há um tabuleiro que abriga os incríveis duelos entre repentistas do coco de embolada?

Ver também o post da exposição Outros Territórios no Viaduto das Artes.

Escrito a partir do post Dutão, de Ana Luiza Nobre (blog Posto 12, posto12.blogspot.com), da esquina O Charme de Madureira, de João Carvalho (revista Piauí 108), e da reportagem Hip-hop met Rio de Janeiro and never stepped back, de Catherine Osborn (The World, 20/11/2017). Fotos: Catherine Osborn, jornal O Dia.