Schie 2.0/ Urban Fabric
Carlos Teixeira
Este texto me foi comissionado pelo filósofo-curador Nelson Brissac para o livro (ainda não publicado) “Arte Cidade Zona Leste”. Com projetos espalhados pelos bairros Pari, Brás e Zona Cerealista (região ao leste do Centro de São Paulo), este que foi o último Arte Cidade procurou estender o projeto à uma escala urbana. Um deles foi uma intervenção ao lado do viaduto na avenida Rangel Pestana pelo coletivo holandês Urban Fabric, que comento a seguir.
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Desprogramar, reprogramar e crossprogramar eram verbos usados com frequência no final dos anos oitenta. A questão do “evento” era então o foco de investigacão de certos arquitetos teóricos que descreviam os prédios de Tóquio ou Nova York como quem vê uma inspiracão inédita para a arquitetura; como se a sobreposição pouco convencional de programas num mesmo prédio fosse uma qualidade das grandes metrópoles passível de ser traduzida, de forma explícita, no projeto arquitetônico.
Alta densidade e alto custo de espaço, quando combinados, viram laboratatório de misturas surpreendentes de usos. Edifício de dezenas de restaurantes empilhados sobre lojas e escritórios, malls de shoppings centers que também servem como saída do metrô e bordéis e academias de ginástica verticalizados eram todos admirados por Bernard Tshumi, Rem Koolhaas e outros. Mas estas misturas não são prerrogativas daquelas cidades: elas acontecem com outras peculiaridades nas cidades pobres do sudeste asiático, nas cidades desconhecidas da África e, com certeza, nas ilhas esquecidas envolvidas pelos grandes bolsões de afluência de São Paulo. Se hoje a manipulação inusitada de programas é uma questão já estabelecida no discurso arquitetônico, essa manipulação designa uma estratégia cada vez mais presente também na prática do urbanismo. É dentro dessa tendência, acredito, que o projeto dos arquitetos do Urban Fabric/Schie 2.0 procura desfazer uma inequívoca tendência de São Paulo: a prevalência do interesse privado sobre o público. E para subverter essa programação ditada pelos interesses mesquinhos de todos aqueles que produzem a cidade, os arquitetos propõem a inserção de novos usos em espaços subutilizados que podem se transformar em espaços públicos. Ativando lugares sem função e apropriando-se de áreas não apropriáveis pelo setor privado.
De uma certa forma, a proposta é como uma volta nos tempos um pouco menos comerciais de São Paulo, quando os grandes equipamenos de lazer eram menos privados e talvez tivessem uma apropriação mais espontânea pela população da Zona Leste. O mesmo viaduto que seccionou o Parque D. Pedro II em várias partes continua ao leste, seccionando também a avenida Rangel Pestana.
A proposta é também uma aposta na “ecologia cinza”; numa melhor qualidade de vida urbana imaginada a partir dos (eco)sistemas urbanos já existentes na cidade, por mais deteriorados que estejam. Feita com resquícios, com espaços negativos, com os restos e as sobras desprezadas pelo mercado de imóveis. Se construída, a “swimming-poolduct” seria a denúncia de uma evidência: agora só resta o espaço aéreo como espaço público, tudo mais já foi invadido pelo mercado. Sobrou imaginar a programação inusitada do espaço, esperar por novos pavimentos acima ou ao lado dos viadutos, das ruas e das calçadas. Como na aventura de “Concentration City”, de J.G. Balard. Nessa estória, o protagonista, habitante de uma cidade de proporções inconcebíveis, passa dias e dias seguidos dentro de uma mesma linha de metrô para tentar descobrir onde seria o fim da cidade (ou se ainda restava qualquer indício de “área verde vertical” no meio de algum prédio). Depois de várias semanas em uma viagem claustrofóbica de metrô, ele percebe que seu objetivo era inatingível: voltara ao ponto de partida sem encontrar aquilo que procurava e, mais importante, sempre andando para o leste e na mesma linha… As coisas podem mudar antes que seja tão tarde, antes que a cena atual se confunda com as distopias imaginárias. E gestos como o destes arquitetos e de todo o Arte Cidade são uma esperança nesse sentido.