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A Ferrovia dos Mil Dias
Carlos M Teixeira

No início dos anos 70, os militares então no poder no Brasil fizeram um estudo preliminar para a construção de uma novíssima ligação ferroviária entre Belo Horizonte, Rio e São Paulo. Os resultados do estudo foram publicados com estardalhaço pela imprensa, recebendo então o nome de Ferrovia do Aço e o apelido de “Ferrovia dos Mil Dias” já que seu prazo de execução era este.

Num total de 834 quilômetros, seus padrões técnicos eram “de primeiro mundo”: via dupla, raios de curvas de alta velocidade, rampa máxima de 1% e eletrificação. A economia crescera a taxas superiores a 10% anuais no período 1968-1974 e imaginava-se que ela manter-se-ia num crescimento acima de 8% até 1980. A demanda de transporte de minério cresceria 29,5% ao ano de 1973 a 1976, e a perspectiva dessa evolução fez com que o presidente Ernesto Geisel temesse pelo estrangulamento da oferta de transporte de minério, o que ameaçaria o abastecimento das usinas siderúrgicas do sudeste do país e o cumprimento dos compromissos assumidos com a exportação dessa matéria-prima.

Só que, mesmo entendendo sua urgência, a Ferrovia do Aço foi planejada com o carro na frente dos bois. Gigantesco, o projeto era justificável considerando-se o impressionante desempenho econômico do Brasil no início da década de 1970 – o Milagre Brasileiro. Ainda não havia a China, mas havia um delírio de infra-estruturas descomunais: ponte Rio-Niterói (?? Km), rodovia Transamazônica (??km), hidrelétrica de Itaipu (então a maior do mundo) etc. Mas no caso da ferrovia, poucas combinações poderiam ser mais arriscadas que prazo exíguo, dimensões continentais e topografia impossível. Quando finalmente foram constatados os enormes custos da construção em decorrência do relevo e outros “imprevistos”, já era tarde. O pior problema foi a supressão da eletrificação, o que deixou abandonados milhões de dólares em equipamentos elétricos e obrigou que as composições que a percorressem fossem tracionadas por locomotivas diesel-elétricas, inadequadas para percorrer os trechos dos túneis sem ventilação, já que seu projeto original previa o uso de locomotivas elétricas.

A eletrificação era considerada vital para a Ferrovia do Aço por várias razões. Com mais de cem túneis, ela inclui em seu caminho o maior da América do Sul, o “tunelão” de 8.600 metros, em Santa Rita de Jacutinga. O principal problema era essa grande quantidade de túneis com quilômetros de comprimento, onde o uso de locomotivas diesel não era recomendado a menos que eles fossem dotados de caríssimos sistemas de exaustão dos gases liberados pelas máquinas durante sua passagem. Em 1976 foi assinado formalmente o contrato das obras e equipamentos para a eletrificação da Ferrovia. Porém, neste mesmo ano começaram os primeiros sintomas de crise econômica, com a persistente elevação dos índices inflacionários. O controle da inflação tornou necessário reduzir os gastos governamentais, inclusive na Ferrovia. O ritmo das obras, que era bastante intenso, foi reduzido a partir de fevereiro de 1977, tornando impossível cumprir o prazo de mil dias. Já era o fim do Milagre e o desempenho da economia brasileira jamais seria o mesmo.

A situação econômica foi gradativamente piorando e as obras foram suspensas em 1978. Quando retomado, o ritmo do empreendimento não era mais o mesmo, tornando-se ainda mais lento a partir de outubro de 1982. Nesse mesmo ano, chegaram os primeiros lotes de equipamentos para a eletrificação previstos no contrato de 1976. A grave crise financeira de 1983 só agravou o quadro, levando à paralisação total da construção no ano seguinte. Viadutos inacabados, túneis inúteis e acampamentos de empreiteiras repletos de máquinas abandonadas, tudo se degradando à ação do tempo, pontilharam a paisagem do sul de Minas Gerais por vários anos ao longo das décadas de 1970 e 1980, ilustrando o fracasso do empreendimento e a absurda decadência de uma infra-estrutura envelhecida que nunca tinha sido usada.

A situação se encontrava assim mal parada há vários anos quando, em 1986, a direção da Rede Ferroviária Federal S/A desenvolveu um plano para tornar viável a Ferrovia no trecho entre Jeceaba e Saudade, com 319 quilômetros de extensão, onde a infra-estrutura estava praticamente terminada. A nova abordagem previa diversas simplificações no projeto, como linha singela (não dupla) e operação com as locomotivas diesel-elétricas. A eletrificação da linha não foi descartada nessa ocasião, mas sim adiada indefinidamente, uma vez que somente sua implantação requereria um investimento superior a um bilhão de dólares.
Uma vez que as perspectivas de implantação da eletrificação eram cada vez menores, resolveu-se aproveitar parte do material especificamente destinado a ela em outras obras ferroviárias governamentais (o metrô do Recife e as linhas suburbanas da CBTU do Rio de Janeiro e São Paulo), mas o resto continua enferrujando num depósito da RFFSA em Cruzeiro (SP). As obras da construção civil da Ferrovia retomaram o ritmo e seguiram até o dia 14 de abril de 1989, quando as duas frentes de obra se encontraram no km 138 + 965m no município de Madre Deus (MG), finalmente permitindo a circulação de trens após 14 anos de obras. A “Ferrovia dos Mil Dias” tinha se tornado a “Ferrovia dos Cinco Mil e Noventa e Oito Dias” e as obras finalmente haviam sido concretizadas, ainda que parcialmente: dentre outras, uma faraônica seqüência de quatro túneis que totalizam 3,2 quilômetros (mais que o gigantesco Rebouças, no Rio de Janeiro) segue incrivelmente inacessível em pleno município de Belo Horizonte, ainda que sempre à espera de qualquer tentativa de retirá-los do limbo.

Esses são os túneis que seriam trazidos à tona como cenografia do nosso projeto Transtorna.

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